domingo, 19 de setembro de 2010

Vaso  com  asas  de  barro


Às vezes
incomoda-me o vento a assobiar na boca
deste meu vaso com asas de barro
e corro a colocar-lhe a tampa.

Outras vezes
encosto-lhe os ouvidos
e ouço o ruído do mar
a entrar no meu silêncio
mansamente.

Quase sempre
é a sombra por ele guardada
que me sobe aos olhos.

Ainda inacabado
o meu vaso com asas de barro vai secando
e tenho de o humedecer para o ir moldando
com a imaginação nas letras que para ele guardo.

Há dias
acordei com as mãos dormentes
de tanto o moldar. Expu-lo à luz da moda
deixando-o ao sabor das intempéries.

Agora
vou recolhê-lo à oficina
antes que alguém
por o achar imperfeito
se sirva dele para treinar tiro ao alvo.



Tenho pena das asas de barro do meu vaso
tão finas e pequenas como elas são
vergam ao sussurro da mais leve brisa
e correm o risco de bater no chão.

Ando a aprender novas tecnologias
com o Mestre primeiro de todos os oleiros
para fortalecer a liga das asas
e ampliar a boca aos ecos verdadeiros.

Um dia espero encontrar meu vaso de barro
apenas com sombra no seu exterior.
Abrir-lhe a tampa e ver a esperança guardada
na luz do ser interior.

Depois
vou colocá-lo no centro da sala
onde os visitantes o possam ver
e dele levar uma fresca lufada
do doce sabor que é aprender.



Hoje fui a casa do Mestre de todos os oleiros
pedir me ensinasse a ciência e a técnica
com que embeleza o interior de seus vasos.

Qual não foi meu espanto quando Ele me disse
que a técnica para embelezar meu vaso
devia ser a mesma técnica com que escrevia.

— Senhor, eu não tenho ciência nem imaginação
para escrever como a arte exige apenas os dedos
destas duas mãos e os olhos que vêem a noite e o dia.

— Pois pinta-o com essa visão que já tens.
Dá menos cor aos murmúrios da noite,
abre mais o desenho à luz do dia.



O barro gela-me as mãos, incha-me os dedos
e a voz sai-me entre-cortada como os pensamentos
a guardar dentro do vaso que vou moldando.

Doi-me a cabeça deste rodopiar na mesa
e a perna da pedaleira chia a falta de sol
adormecido nos olhos sombrios — o solo.

A terra cavada e o jardim adormecido
à espera do despertar de Março. O cuco
a lembrar que passou o tempo da poda.

Apanho uns gavetos de vide seca, atiço
o lume no formo que há-de cozer o barro
na sua forma definitiva.

A espera é a lentidão do tempo a voar
depois do crepúsculo até ao nascer da aurora.
Vou alisando as paredes do vaso com um pincel
húmido e uma demão de cola.



Fui ao supermercado dos sonhos comprar guardanapos
com motivos suficientes para embelezar as paredes do vaso
e não encontrei nenhum que entusiasmasse.

Voltei triste à oficina; olhei para o vaso
e pus-me a pensar que se ele falasse
talvez me dissesse como o tornar mais forte,
mais liso e belo dentro da sua forma.

Senti um sussurro a socar-me o peito: —
sou o que sou e o que mais importa:
tu é que és o barro e eu o oleiro
sou eu quem molda, quem te dá a forma,
a forma que tenho é a mesma que és.



Doem-me estas asas de barro
pesam-me no corpo
como pedaços de noite solitários
cobertos de mármore branco

não tenho como desprendê-las da ânfora
sem magoar o jardim

isto de ser vaso de barro
de boca aberta às tempestades
dos ciclos da lua
angustia-me
como uivo de cão no escuro.



Doem-me estas asas de barro
pesam-me no corpo
como pedaços de noite solitários
cobertos de mármore branco

não tenho como desprendê-las da ânfora
sem magoar o jardim

isto de ser vaso de barro
de boca aberta às tempestades
dos ciclos da lua
angustia-me
como uivo de cão no escuro.



Ainda que fosse apenas este sentir nas asas
o peso da boca do vaso
ou mesmo este doer-me a água no corpo
é a Esperança a animadora da forja
onde a coragem das horas escuras
são silêncio.



As minhas asas sentem a falta do calor das horas.
Habitam entre silêncios e ecos com lufadas de vento
quando o clima se lembra das visitar e o céu se abre
a um pouco de sol morno entre vagas de espuma.

Às vezes, sofro a cola dos momentos de areia
a friccionarem-me a pele entre os dedos dos pés.

Quando inventarem uma farmácia onde possa comprar
medicamentos para a dor de cabeça das palavras
abro o meu mealheiro de letras
levo prescrição a preceito
peço recibo de todas aquelas que me fazem feliz
e me seguram as asas na falta do calor das horas.



As minhas asas não voam
dificultam-me o andar
junto ao sol
onde se apoiam os pés.



Se a realidade fosse sempre a força
de que material seria feito as minhas asas?
E como poderiam elas bater e voar
se não fossem asas de sonhos?



As minhas asas suportam no tempo o “adeus”
do sol e da chuva, do vento e do fogo que as coze
entre vermelhos de solidão.

As minhas asas suportam as palavras e os gestos
dos momentos esquecidos no calendário de parede.

As minhas asas suportam-se
como suportam o vaso onde estão coladas
entre luz e sombra num lampejo de vida
mesmo que entre o sono dos dias
e o gelo das noites sem ouvir o mar…



Janeiro trouxe um vento novo às minhas asas
endurece-as este Fevereiro de noites ambíguas.

As minhas asas são sensíveis à luz como os olhos
queixam-se de faltas várias entre calores de arrepio
tapados pelas paredes brancas da voz piana.

Ainda que holofotes quentes permanecessem
aquecendo o ninho onde minhas asas dormem
pesadas, eles seriam apenas sentidos
de marteladas na face do poema — ondas de água
caída do céu para um rio sem margens.



O oleiro deixou de se preocupar com a forma
e meu vaso ficou esquecido na oficina
engolindo o pó que vai sendo depositado
por novas peças em construção.

Às vezes, não são as asas que pesam
mas a boca aberta que elas não tapam
nem protegem dum desejo de momento
e duma vida em construção

mesmo que o caminho seja inseguro e meu vaso
se possa partir contra as pedras que o adornam
os cascos falarão o vestígio de ter existido
com asas que vergam ao sopro da brisa.



O verniz estalou na asa esquerda do vaso
com um sorriso feito luz de corpo presente
e olhares de ausência.

Pudessem todos os sorrisos ser perfeitos
como o que estalou a minha asa
no abrigo do sono com a luz da escuridão
a enfeitar o silêncio das marteladas
que vão comendo o verniz das asas — Pudessem…!



Às vezes, gostava que minhas asas
fossem apenas peso do meu corpo
não fossem levedura
fermentando na valsa do tempo
apenas
dum corpo de barro em transformação.

Minhas e de mais ninguém
sempre da espuma dos olhos
e do sabor a sal…

Vou caminhar minha sombra
o corpo já não me sabe

Não nos sabemos sem Thanatos
a beijar o tempo.



A minha boca sabe a sangue e penas
arrancadas das asas pelo vento — as leva
a água dum banho com arrepio da manhã

orvalho sobre mármore
aquecendo a penumbra que manta os olhos
o Ser
pesa-os.



Ainda que de barro
há dias
em que as asas são leves

levitam o corpo
como refresco de sentidos.

Outros
brutalizam a alma
no fundo do poço
sem trégua

As minhas asas traem-me
seguem caminhos desconhecidos
dentro da floresta
sem sol onde sou em letras.



Apetece-me deixar fluir o rio dos olhos
até à boca, provar o sal da alma inchada
e o vermelho das veias a escorregar dos punhos
deste vaso de barro imperfeito e complexo.

Com alguma luz na massa cinza — granito
dentro do poema a martelar as asas
colando-as a um chão — cada vez mais apetecidos
os cacos que não se levantam — de barro cozido.

Olho o dia sem luz na graciosidade sonolenta
que trava com a razão uma batalha de corpo
com presas de veneno junto ao coração.

Um toque, um levitar. Partir e chegar
ao sono de onde vim e onde vou ficar
entre paredes húmidas corroendo o esqueleto.



Que pode a vida sem Eros e que poder tem Thanatos
dentro da passagem do tempo. Os pés descalços
beijam as silvas dos caminhos por onde a razão
quer avançar de encontro ao eterno sereno do sono.

A erosão vai desgastando estas asas poluídas
por sentimentos de terra que o relógio demora.

Se de um vaso eu vim e ao vaso eu regresso
se sou vaso de pó molhado e ao pó seco pertenço,
venha o vento espalhar as partículas, já é tempo!



Encontro sereno às portas da morgue,
o corpo hesita: entra, não entra, quer entrar.
O peso do tempo ido marca o compasso e
os olhos recusam olhar além.

A certeza do futuro é uma sombra
percorrendo os dias ao lado da noite
a morgue é um leito apetecido
no sereno sono do Além.

As asas feridas, um vaso de barro
sem flores nem água nem pinturas
apenas
um vaso esquecido entre relva pousado
e quem passa não vê mas ele vê alguém!



Quem dera que logo chegue a força das ervas
que cubram o corpo do vaso pousado.
O choro será então abafado
pelos passos que passam sem sentirem ninguém.



No dia em que as comportas dos olhos se fecharam,
o sol era igual ao dos outros dias cinza,
os raios rompiam a opacidade do tecto,
as nuvens anunciavam uma chuva de pedras
(ou fina a entranhar-se até aos ossos)
que não caiu para regar o jardim sequioso,
as trevas não tinham a profundidade
que não permitisse ao céu uma ténue luz.

Não era triste nem alegre nem escuro nem claro
nem extraordinário. Era um dia normal com agonia
nos olhos e peso nas asas.

Um dia mais a cair na pele e a enrugá-la
traçando sulcos escondidos na carne
como bálsamo de sofrimento — com paixão
a queimar no motor do corpo.



O vinho a saltar no vaso, como sangue nas veias,
entupe a visão e estanca as dores horrorosas
como lava morna atirada pelo vulcão do peito.

As asas esburacadas deixam de ser o suporte.
Inutilmente a vasilha é olhada, talvez com pena,
por ter perdido toda a capacidade de realizar
a sua função primária:
matar a sede ao caminhante.

Em redor, o caos do mundo passa sereno
dentro do tentáculo económico.
Um dia mais a adiar o funeral do tempo…



Como pode o vaso ter utilidade
se não lhe compreendem a essência
nem a utilidade, se não olham para cima
onde fica a oficina do oleiro
e não perguntam ao lado esquerdo
do peito: o que lá há, o que há por baixo
de lá, o que havia antes de haver em baixo,
o que pode haver depois lá em cima?

Só depois das respostas encontradas
é que se pode nascer como vaso
para a utilidade pretendida por amor do oleiro!

«Teu é o combate! E de ti vem o poder!1»

1 — [O Terceiro Rolo, Rolos de Qumrân — O Rolo da Guerra]



Ainda que meu vaso fosse de ferro maciço
e inchasse sem rebentar com o volume e peso
das palavras, mesmo daquelas que vêm como eco
do interior do silêncio que ele guarda [e eu sou!]
em volume maior, as asas teriam de ser manejáveis
torcer-se, rebentar, cair. As asas que levam e trazem
em voo ou pela mão de quem o leva à fonte
com todo o cuidado para não o destruir.

Não é menor a força nem o comporte
por meu vaso ser de barro cozido
na fogueira dos sentidos com asas de chão.

Pela boca dele também entram ecos
que vêm nas asas das aves
quando meus olhos vêem o fim a aproximar-se.



Mais uma vez fui à olaria para encher
de ecos o meu vaso imperfeito e insatisfeito.
Mestre oleiro atirou-me pela boca das páginas
para dentro do peito:

«E agora digo-vos este mistério:
os pecadores alteram e reescrevem as palavras verdadeiras,
mudam a maioria, mentem e forjam grandiosas ficções,
redigem as Escrituras em seu nome.
Era bom que eles escrevessem em seu nome todas as minhas palavras,
fielmente, sem as apagarem nem alterarem,
mas redigindo fielmente os testemunhos que eu lhes transmito!
Sei ainda um segundo mistério:
os justos, os santos e os sábios receberão meus livros
para se regozijarem com a verdade (…)
Acreditarão neles e regozijar-se-ão e TODOS os justos
jubilarão de aprender neles todos os caminhos de verdade.1»

E meu vaso agora cheio olha o relógio sombrio.
As asas mexem-se no temor de não ter tempo
para repor as verdadeiras palavras no livro.

1 — [O Sexto Rolo, Rolos de Qumrân — Livro de Henoc]



Que pena me faz este vaso cheio de futilidades
dessa vaidade imensa de carregar teclas com asas de barro.

Será que ainda vai a tempo a emenda
antes que entre no forno para a cozedura final?

Tenho pena das palavras que não sei
dos ecos que não chegaram a entrar no vaso
para me fizerem crescer.

É tão pobre e pequeno o meu vaso…



A boca deste vaso com asas de barro
anda insatisfeita. Procura engolir ecos
que atinjam o coração acalmando
os batimentos que lhe ferem as veias.

A Mulher! Oh, Mulher!
Da tua boca sai o mel e o fel.
O amor é um brasão a arder.
As tuas palavras são ambíguas
tão tapadas como a luz
tão descobertas como a escuridão.
Tu, também oleira do vaso
das asas
do coração.

Pode teu rosto de flor primaveril
rosado, alegre e atraente
carregar este coração angustiado?

A tua doçura pode cobrir as feridas
destas carnes enrugadas pelo tempo?



Neste meu vaso um eco de sonho
de pequena fonte se converteu em rio
e foi luz e sol e abundância de água,
assim Ester no sonho de Mardoqueu.

O rio que foi Rainha pela fidelidade
a Luz que é Deus em Sua Justiça
a água abundante que brota do eco
numa página de sol que ainda perdura.

Minhas asas mansas descansam
do labor da massa cinza e do peito
as marteladas somem-se — são sussurro.

O meu vaso ainda não está cheio,
tem ânsia de mais tem sede e quer beber
na fonte pura dos ecos do Pai!



Quanto mais penso a vida, mais me revolta
esta coisa de ter nascido sem me perguntarem opinião
nem me instruirem para o que ela é de forma
a que pudesse escolher entre existir ou não.

Quanto mais me penso na vida, mais me vejo longe dela
e mais a detesto. Viver não me trouxe (parece não ter trazido)
nada que valesse a pena — foi um vegetar constante
com adornos de animalidade de desejos,
procriativos ou não.

O mundo é uma fera sempre insatisfeita de sangue e carne
e apanha as suas presas com maior facilidade entre aqueles que a pensam.

Todos nós somos um pouco dessa fera insana que rói as unhas
sempre que não realiza um sonho, ou sempre que a realidade
se apresenta exactamente como é
e não como gostaríamos que fosse.

Para viver é (parece ser) preciso ter, não basta ser,
pois que não existem valores para matar a fome,
vestir, proteger do frio, viajar. O ter é (parece ser) o segredo,
a felicidade na vida do solo — a única que parece ser capaz de ser plena.

Doem-me estas asas ligadas por cabo ao servidor central do corpo
e todos os periféricos por onde a corrente passa,
nem sempre para dar luz — mas como choque
que quase leva a electrocutar a própria vida.

É duro passar anos com os pés na terra e sentir
que nada valeu a pena,
o mesmo nada que seria se não nascesse.

Talvez consiga ter coragem para aliviar as asas,
descarregando toda a electricidade do corpo
numa vasilha de madeira atirada ao fundo do solo —
onde a dor não existe.

Afinal, que tem sido viver senão dor?
E para que serve senti-la?



No peito, uma estaca afiada age só com toda a violência
trucidando os músculos e os órgãos sensitivos
com marteladas a picarem na pedra que provoca
a chuva das fontes onde a luz escurece a cada batida
da massa escondida na cabeça.

Latejam as fontes, treme a boca, e o nariz não inala o necessário,
um nó na garganta pinta o quadro belo do adormecer
ao som do sino dum campanário aldeão.

Há quem consiga pintar o céu e traçar-lhe mapas cor de rosa
entre os capítulos de silêncio que levam duma estrela a outra,
de um mundo ao outro — numa nave especial com porto no coração
e sem paragens nem transbordos entre estações do ser.

Têm sorte!

É que não basta viajar entre mundos por mapas cor de rosa,
vale mais viajar entre duas estrelas cintilantes
que nascem no espaço do manto que acalenta e protege,
acariciando os olhos em cada etapa que leva duma estação a outra
no mapa astral que são os sentidos.

Contudo, isso não está ao alcance de qualquer um,
nunca esteve. Alcança-o quem consegue encontrar
outro rio, no mesmo percurso do seu e (afluente ou não)
parte no curso novo de mistura das águas,
na mesma velocidade,
no mesmo frenesim e com a mesma calma
de serem dois rios num curso só a atingir o estuário
onde desaguam os dias na mesma satisfação comum.

Casarem-se as águas de dois rios diferentes e quererem-se
na continuidade até ao mar, é o maravilhoso da vida
e o alimento maior dentro da maior protecção depois
de se sair do útero da mãe, onde não houve divórcio
dos sentidos nem falta de amor pleno para o nascer,
e é todos os dias nascer dentro do útero do amor
que une dois corações que a vida pode acontecer
como viagem maravilhosa ao céu através dum mapa cor de rosa.



Gosto de olhar as estrelas da tua face
quando me deixas beber da tua fonte
no silêncio onde os gestos são eloquentes
e o corpo chora o jardim.

O odor que brota,
beija-me a alma o dia inteiro
e povoa o cosmos com luz
na viagem entre dois sois que se tocam.

Às vezes, sinto o improvável do tempo
e a sua improvidência nas asas.

Há algo de fantástico no ter a voz nas mãos,
mesmo quando estas asas,
de tão pesadas,
doem e fazem temer a segurança do vaso;
mesmo quando o chão se faz cama apetecida.

As minhas asas têm apenas um dom,
não voam ao sabor do vento nem fazem dele estrada.
São asas num corpo fixo,
falam e alisam o poema com língua
dentro da caixa e vírgula dentro do caixão.

São asas vivas, asas que voam na paixão do corpo
e na suavidade da luz que os olhos emanam
para o astro da noite.

São asas simples, rudes?, sim!,
asas de condição na única que é do ser «pó e ao pó tornar»,
mas vivas — levitam no espírito através do denso da noite
dos teoremas matemáticos, das certezas físicas;
num desenho de imaginação aposto a uma página branca
com sabores a mel e chá.

Talvez minhas asas se permitam a um gelado de gestos,
a um café de insónia entre as paredes do poema rasgado
a toda a pontuação. Se calhar,
as minhas asas querem a frase solta na língua,
pesem nas entrelinhas do olhar no rio único.

Um dia as minhas asas vão levitar na tua pele de rosa pura,
fazer-te sentir a frescura do vento que formam
e hás-de ter sede delas na garganta
onde prendes as palavras com sabor a AMO-TE!



Ter apenas estas asas que molham a boca
com sabor de barro, é triste.
Enruga a pele do poema
e transformam-o em objecto (ou desejecto)
como o produto das gaivotas sobre a areia da praia
depois de lauta refeição das sobras humanas.

Gostaria de pintar as minhas asas,
um dia,
com o sabor das maresias
entre as cores dum astro único e o cheiro de raízes
a alimentarem-se dos sais da terra.
Colocar-lhes o matiz do tempo na felicidade
que brota dos sóis do rosto.

Apesar da escuridão, a noite
é apenas um túnel de passagem
para a boca do dia.

Pudesse ele transparecer sereno
e tudo seria ardor sem a dor no poema
imperfeito
que bebe do barro a dor,
na tristeza do dejecto de gaivota
sobre uma areia de praia límpida
depois da lauta refeição dos restos humanos.

Asas pintadas, sim.
Asas de amor com luz de estrelas dentro dum mapa,
embora imperfeito,
a conjugar o verbo amar na primeira pessoa de dois,
com o matiz do rosto a abrir os lábios
aos sais do corpo.



Tenho saudades do tempo em que minhas asas eram pequeninas e,
por não terem penas, não sabiam voar;
o mesmo tempo em que a inteligência não tinha estrada para andar;
das histórias entre lençóis quentinhos de amor
e da lisura das mãos nos cabelos doloridos
pelo sol do dia que me prendia os pés ao chão.

Sinto o mesmo como peso,
quando as asas se transformam em pés
num pino imperfeito.
Como se a minha cabeça fosse igual à do mundo —
voltada ao avesso do olhar.



O que dói mais às minhas asas pequeninas
e manejáveis é a impotência,
a voz que se trava por não ter nada mais a dizer;
por nada mais saber fazer, os olhos perdem
a claridade dos dias e das noites, a luz suave,
vai desaparecendo do horizonte;
a terra do poema deixa crescer as ervas,
indescriminadamente,
sem se importar com os répteis que a possam povoar
ou os vírus que possam apanhar — neste abafo,
as flores murcham no jardim
informe
em que se transforma o silêncio dos órgãos sob a pele.



Nem sempre a obra sai perfeita das mãos do oleiro
e são tantos os factores para a imperfeição,
desde a própria matéria-prima à inspiração,
a criatividade, o desenho,
a moldura dos contornos que fazem a graciosidade final
para os olhos se apaixonarem pelo criado que nasceu
na sombra da massa sobre os cabelos,
foi inalado com sofreguidão e inchou os pulmões,
vibrou nas veias e foi cozido no coração —
apesar das dores com que muitas vezes se caminha
entre a imaginação e o objecto final.



No fundo, a tristeza: não dói. É apenas um estado
em que os olhos apanham menos cor do dia
e se fecham mais de noite, soluçando a falta de luz
com que vai chegando a primavera ao poema
sem o abrir nem o fazer puxar as flores de maio
nem mesmo os frutos de outono.

Não se deita na praia do verão aquecido
pelo sol da boca a derreter as pedras do mar
antes as empurra para a margem de todos os invernos
num bloqueio de sons e vontade… que as mãos dão
para a solidão do vaso ser sentida e preparada
ao silêncio da sua condição — por justaposição…



Amar é, sobretudo, sentir paz e estar
em harmonia com o espaço físico e espiritual
de todas as coisas a começar dentro do núcleo
interior, expandindo-se à inteligência,
descendo ao coração com adorno de flor
e fragrância de primavera em todos os momentos.

Criar o sono do descanso com toalhas estendidas
ao sol do corpo e ao sal do mar das veias
com riso e choro de crianças no colo comendo
o sabor da vida pelos olhos dos pais em cada gesto
de carinho e ternura com que se alisa o jardim do seu templo
em crescimento.

É por isso, também, que me doem as asas
sem mãos que as agarrem
nem carinho que as levem até à fonte
onde brotam desejos de infinito na pele.



O inchaço das mãos num pico fútil
pus da voz com óleo de antibiótico
a descer as paredes do poema que
as gaivotas vão comendo
lentamente
da lixeira humana
onde secam os restos
na descoberta duma qualquer ilha
ao tempo do «infante» amado.

Cansa este moer miúdo de frases
espelhadas. A transparência do gelo
no rosto — água espalhando a manhã.

As pedras são perfeitos monumentos
da passem do tempo
sem mágoas.



Como é bom sentir que estas asas imperfeitas
estão quase a atingir a perfeição do oleiro
neste tempo dado ao poema para respirar
o pedaço de chão que lhe foge entre os dedos.

Esta sensação de querer e não querer
ser e não estar
poder e não ficar
entre as palavras apagadas.

Este Eros em fogo; este Thanatos a chamar,
este linho de manhãs —
som de despertar — a noite.

Transmigração
altivez
flor incriada no deserto.

Perene
o sol no tempo
a escuridão na alma.



o corvo roça o adormecer do dia
em círculos lagos, o céu desenhado
em tons laranja, sumarenta a pose
do rosto, lábios abertos ao mar

descem pelas curvas das nuvens
passeantes nos olhos

asas planando a brisa
no suave chegar do orvalho



A pomba da madrugada de asas
escancaradas ao pequeno sol
o jardim da cidade canta o relógio
aspersão das palavras
letras abertas ao poema
da boca



um desejo arde na língua
solta a face do céu
morada
da seiva no poema



As minhas asas ainda não percebem
as marés dos dias, sem o sol a beijar
a clorofila das letras no poema

o querer e não querer
estar e desaparecer

asas ora abertas ora fechadas
ao sabor do mar

… momentos



Asas que levam ao colo o vermelho
da esquerda página com aleluias
ao sol do cumprimento das veias —
as mesmas que me mergulham

no transe dermágico

um borbulhar de águas
na boca da fonte
em chão terra de olhos
presos

o poema a levitar
na alma

o interior a planar
o vento
sobre o monte

Vénus ainda é deusa desejada

no beijo da madrugada
nasce o dia!



O belo aproxima-se das minhas asas
na mesma velocidade com que lhe fujo

corro no oceano de mim

uma estrada densa

ele é um poema feito
com nome
dentro do Ser — apenas

um odor
na pele
feito página

e a caneta pousa
molhada
na toalha do corpo
nu



Ainda que a fala pouse nas mãos
agarrada à boca do vaso

uma macieira num quintal

a cesta na mão

Ainda que chegue ao poema
o algarve

uma letra parte pela praia

e volta
na maré
do verão

estás lá para apanhá-la?



«Os caminhos do silêncio»1




Ao despertar do dia ocorrem as tarefas,
o tempo aprisiona-se nos trabalhos
e o pensamento neles andou no nocturno
descanso. Recuperação a dizer que nada
deve atingir a primeira hora da madrugada
pertencente ao dever rezar em silêncio.

O «sacrifício de excelência»
dentro das capacidades limitadas
faz do mistério da Redenção, um convite.

«Senhor, que queres de mim?»2

A revelação vem num diálogo silencioso
e segue-se o dia
nos trabalhos que ocorrem ao despertar
sabendo que são os caminhos indicados
neste colóquio
onde arde o fogo do amor
brotando da alma
em crescimento
a penetrar a alegria da claridade divina.

1 — Título duma revista católica suiça (1932) — Edith Stein(a), cartas.
2 — Santa Teresa D’Ávila
(a) Mártir de Auschwitz (2 de Agosto 1942), beatificada e canonizada por João Paulo II. Dia de Solenidade, 9 de Agosto.


JFráguas — Vaso com asas de barro, Fevereiro 2009.

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