ENTRE PALAVRAS - 2
[Urbe]
Junto ao chão a capa dura, o livro aberto
come do sol dos olhos. Ecos a entrar. As
ruas cheias de pés afastam-se as pombas.
Passagem estreita ao pão no chão — bicos.
Asas entre um sol escuro, o quatro, a viela.
A linhas e as curvas, o supermercado vazio.
Um desenho apenas as pedras que o rio beija
na foz. O dente a bater a fome estendida, mar
sereno por onde o lápis desliza na noite.
Chamas à terra pedaço de pão, cozido no código
das ruas escuras. Sé onde vão dar todas as vírgulas
com orgulho no ponto que salta. A letra vai ao final
— sem retorno.
O teu corpo tem a perfumância dos jardins
e de gaivotas.
[Geometrias]
Côncavo, convexo,
incha, diminui.
Amores?
E o vento, sopra de que lado?
Está chuva... palavras apenas,
e voam é vento e tempo,
e vento no tempo...
o vento e as asas
que cantam... as asas
paradas... as asas.
O ninho é hoje...
Estendo o leito, a palha,
o Alentejo, o restolho....
É olho lá, no frio, a neve
que também cai
na língua é quente…
Sempre cansa
é ontem é tarde
cansa os pés
os olhos
as mãos
sempre já foi
voou era ontem
é tarde o sempre
como sopa fria
é amanhã
também?
Talvez.
Sim, os dedos. Nada como eles
para saborear a cor, ver a brisa
ouvir o som do arco íris.
Eles e a demência, são o brinde ao nada,
ao ninguém, na pele do bolo.
No crepúsculo da memória canta
o repouso do parir-me outra mulher.
A voz obdurada num corpo obducto olha a sombra
da neve no céu da língua; não consegue sentir
o sabor do arco íris nem ouve o fumo nem vê de que sons
é feito o brinde na pele do bolo. Suficiências não-vertidas no eco.
Por muito que se conheça, deixa que haver que conhecer?
Somos o que somos depois de sairmos do oleiro do destino
talvez enfraquecidos pela têmpera dos antepassados
que procuraram, encontraram e deixaram o que procuramos,
vamos encontrando e deixando; rendilhando o mesmo
e nem sempre tornando mais rico, o conhecimento que foi
o princípio! e nós imitamos — mais nada!
Sobes degraus, o patamar espera-te,
olhas em redor dum alto de lanço de escada
julgando-te maior na capacidade de observação
recolhes a vida semeada como areias na mão
apartadas entre dedos de altruísmo egoísta.
Olhas as asas e a capacidade de voo, os altos
e baixos dos critérios em adaptação.
Os outros não são sede na tua boca
nem semente do teu pão, apenas… nada?!
Quando meus dedos tocam a chamar à procura —
chamar a procurar, a árvore escondida de ramos
abertos ao mundo — para-além-das-horas-vazias,
ficas-te obsoleto a elevar a voz, que de tão alta
deixa de ser ouvida!
A nave os dedos, essa forma de linguagem ciclica
que voa entre o vaso de barro e o tempo com marteladas
pungentes nas paisagens de linho, a força das estrelas
em noites de lua cheia, o uivo do lobo marcando
um território limitado por cheiros, uma pomba
escura contrastando com a cal das paredes e o bico
do colibri. Nesse cosmo de «eterno retorno»,
os ecos pintam as marés. A viagem dentro do conhecido.
Para além da visão dos astros vive outro conhecimento
que não começa em Eros nem termina em Thanatos.
Os dedos, essa forma de linguagem ciclica
que voa do vaso de barro para a alvura das folhas.
Nesse universo de «eterno retorno», os ecos
pintam mares circum-navegados — estrelas
em noites de lua cheia, a migração das aves,
o desabrochar da flor, o caiar das paredes do poema.
Será que não há mais nada para desta moderna
expressão da voz de todos os silêncios
que se formam dentro da massa cinza
desconhecida como o cosmos
ou as profundezas oceânicas?
As pequenas coisas regadas com o orvalho do coração
aberto todas as manhãs à frescura dos prazeres
partilhados. A revelação do amor no seu mistério
próprio. A amizade, o próprio fluxo e refluxo do Ser.
A porta aberta à estrada permite a escolha.
Que voz sopra aos versos as rugas do tronco,
o rafego das folhas, as linhas da frase, o mapa
astral dos mares circum-navegados?
Fio d’Água[1]
Helena Kolody
E eu a raiz que se alimenta
no mesmo fio escondido
na mata silenciosa por excelência.
NADA
Ainda que tudo gele no corpo
e meu sopro se aproxime
do gelo que tudo gela
manterei aquecidas as mãos
num esforço de desenhar com os dedos
a recordação da vida.
Ainda que o esquecimento seja norma
das portas por onde passei
na vulgaridade do efémero
manterei acesa a candeia
do fundo da minha sombra.
Ainda que seja apenas — nada!
AGORA
A hora é agora dentro do tempo
todo o sol difuso que cai nas mãos
e o não, os não do sim, o sim
na transparência da impotência
o espelho, o vidro, a cara. Que carga
vista e alcançada no agora da hora.
Apenas um sorriso longínquo
apenas um vidro passageiro
um pensamento um pouco altaneio?…
A hora foi-se junto ao agora
que não restou no espaço
entre palavra e letras
entrelinhas e virgulas
da hora que se não contempla
no agora.
às mães da miséria prenhes pelo egoísmo
e aos filhos da fome que bebem da guerra
o leite das balas no cio económico.
àqueles gerados das cápsulas das papoilas
qual rio que corre para o mar do vício
fecundados à margem da humanidade.
O tempo infinito era vestido de sombra.
Entre um baile e outro nada encantava
a sombra que era o tempo sem aurora
dormindo no infinito o tempo era nada.
Um trovão de vontade acordou a aurora
e o tempo enamorou-se da sua beleza
com ela casou e deu-lhe dois filhos
a um chamou noite e ao outro dia.
À menina vestiu-a com um manto de estrelas,
deu ao menino um arco-íris por véu a vesti-lo
e ajeitou forma de lhes dar pretendentes.
Criou então a humanidade que olhou o dia
com grande espanto pela luz que lhe dava;
e elegeu a noite rainha da alegria.
JFráguas — Janeiro/Dezembro 2008
Sem comentários:
Enviar um comentário