domingo, 19 de setembro de 2010

«ELOGIO DA LOUCURA»(a)


1.

Exactamente!
Recebo a loucura na ponta dos dedos.
Como poderia saber-me se a não recebesse,
exactamente,
na ponta dos dedos?!…

Desde que (des)aprendi a moralidade, é neles que ela se manifesta.
Neles e nos olhos que inflamam quando o estômago não aguenta
tantos vermes verborreicos auxiliando o NADA! Isso mesmo: — o NADA!
A urgência do NADA acaba comigo. Dou em doido varrido
sempre que ele me bate à porta do corpo.
Às vezes nem bate, entra, senta-se na minha poltrona preferida
e fica-se ali a cismar, esvaindo o tempo em que deveria ser alguma coisa.

Exactamente!
Recebo a loucura na ponta dos dedos
sem necessidade de carteiro para ma fazer chegar,
com registo de entrega ao domicílio, no rosto.
É, por isso, que a loucura nunca demora muito nas suas viagens.
O primeiro sintoma da sua chegada, é a pressão das veias.
Carregam… carregam… carregam…
Cargas de loucura que vou deixando cair, pesada,
na toalha de papel sobre a mesa de todos os dias.



2.

O medo colou-se à garganta, espetou a pele
e escondeu-se da luz, no corpo.

Nas horas presentes, adormece.

Na ausência, é vivo,
desperta pela quietude da tarde,
como as estrelas.

Cobre-se timidamente,
qual a lua,
com nuvens transparentes a ameaçar os olhos.

Correndo pelos ribeiros vermelhos,
atinge o motor do peito,
gripando-o.

Como filtro de ar,
agarra todas as partículas,
abafando.

Veste-se na praia dos sonhos desfeitos,
com os seios desnudos a pingar “histórias”
ditas para o (des)conhecer.



3.

«Para que queres conhecer os meus corvos?»1

ou a cor dos meus cabelos, a maciez da minha flor
orvalhada pela madrugada, ou o veludo escondido
entre as folhas douradas, ou as ervas vergadas
por onde passou o vento?

Que interessa a minha árvore desnuda,
ou os rebentos que vão surgindo quando o sol os beija?

Para que queres conhecer-me? Que te toca?



4.

Que importa?
E ainda que importa-se que tenho, agora?

Se te digo, avisas que me deste tempo
para montar a história — tempo que não tive,
não me lembro de ter, pois que não necessito
de montagem nem de aragem para histórias…

Que importa? Que (m)importa!…



5.

Efectivamente,
é a loucura que me suporta nos dias de Primavera,
quando a visão voa para longe da esfera onde estou?!

Um óleo negro cobre-me o corpo de arrepios,
alisa-me a pele, entra em combustão de corpo
o sentimento louco. Sim, louco sou!



6.

A minha alma. Que é dela? Em que caminho a perdi?
Em que vaso ficou enquanto cresci?
Que terra alimentou os caules dela?

Essa coisa branca, transparente, saiu de mim?,
ficou ausente, vazia como a esperança
a fonte secou?

Quando era pé descalço nas estradas de terra,
bebia a frescura do vento. O tempo passava
com olhar brando entre os ramos em crescimento.

A alma era… na raiz!



7.

A minha mãe tinha quatro bicos a picar-lhe o peito.
Eram de barro os peitos de minha mãe.
Barro vermelho-vivo que verteu pela boca
quando a casca se abriu ao tempo dos vermes.
Tinha espelhos lindos na pele dura,
um interior de refresco como as manhãs.

Lembro-me apenas duma silhueta,
igual à sombra das nuvens, a descer,
devagarinho,
pela garganta da terra, onde iniciou a viagem
para a memória. Também das palavras
que não tive oportunidade de dizer,
o leite que não pude beber,
os beijos que morreram à porta,
sem saída.

Talvez a minha mãe não fosse mais do que um sonho,
uma vontade presente de ser criança embalada
no carrocel da despreocupação da vida.
Ou…, apenas,
um pedaço de pele colado ao corpo,
como lapa a uma rocha —, a segurar com mansidão
a minha alma,
a minha raiz,
a minha loucura…
O meu NADA urgentemente louco, sentado na cadeira do tempo vazio.


JFráguas. — Elogio da Loucura, Março 2009.

(a) Erasmo de Roterdão.
1 — Ana Maria Costa.

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