Poemas Soltos - 2
1.
No silêncio do jardim entram ecos de sonhos
num momento de olhos. Imagem fundeada na pele,
que a ponta dos dedos desenha: — jarra com flores
vivas, perfumando a sala de linho com mosto do corpo.
(Não teças as cordas dos meus ouvidos, entre destroços
de mar volúpio, areias secas ou cicatrizes de guerra.
— O oásis descobre-se quando a sede morre.)
A sinfonia do teu silêncio
é a voz dos ditongos abertos no túmulo
inferior, pintado a vermelho.
A quietude de teus braços
espera folhas novas dentro do aposítico
onde deixaste a voz.
(— Uma catedral erguida na boca do cavalo.)
2.
O meu mundo de memórias parou na primária das leis
do mundo. Entre letras, a matemática em lugar de destaque:
— as vírgulas dividindo os sonhos e os pensamentos
de resultado inexacto.
A fonte goteja à pele uma valquíria…
nas ondas.
3.
O meu pão foi colhido no celeiro peninsular.
Labaredas nos dedos, sal nos olhos.
As palavras vertem água.
A fome e o vazio das montanhas cobertas de neve,
gemem o fungo do acrescento das mãos.
Na curva do Caminho um cão uiva à lua
o beijo da vaidade insolente
das “virtudes” compostas.
A lealdade das letras
desce ao apelo das falanges,
com vergonha.
4.
Não quero atirar ao papel as cores
da brancura, nem a transparência
do véu dos gomos da laranja.
O túmulo é uma verdade menor
regado com sumo de cerejas.
Uma verdade maior?
— Roseiral parido no peito!
5.
Nos dedos a quebra das palavras geme a sinalética
da língua em sussurros de entrecosto frito. O azeite
na candeia. A bordadura do tempo na cama, o azedume
entregue aos ais esquecidos — o voo das andorinhas
para terras mais quentes.
As ondas sobem… mexilhões bordam
as mamas da rocha.
Fome nos olhos a ferver na panela
estereotipada.
6.
A personalidade também se compreende
pela qualidade da roupa que se usa…
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
O cigano enfia as mãos em ambas gavetas das calças:
um relógio parado e uma carteira “fanada” ao guarda nocturno.
Atirou os olhos à mole passante e, como aranha, sentou-se
na teia, pacientemente. — Está predestinado à cadeira
no centro da lareira. — As gargalhadas vão morrendo, lentas.
7.
Deixa que me atire à bordadura da praia procurando
um búzio que me faça ouvir o chamamento de teu mar
a bater nos seixos com sabor a figos e mel.
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
A máscara não me favorece nem te alivia
do mais leve dos meus fardos — a melancolia
que desce às mãos, passando pela garganta.
Um engolir seco que quase asfixia a juventude
tonta e seus caprichos…
8.
Os sentimentos incomodam, desnudam o Ego,
não urdem fórmulas, chamam-se pelo nome próprio
e provocam tempestades sem subterfúgios.
São púdicos, guardam-se no quarto de cama,
ou esquecem-se no lençol da memória.
Os sentimentos esquecidos fazem pior do que os lembrados:
— distraem de possíveis interferências no Ser…
9.
Os ares da cidade são perigosos. Respirá-los
é adormecer entre horários e perfume de petróleo
numa cama fria com um cobertor desconhecido.
Bebo-os em pequenos golos de arrumadores
por um copo de carteiristas. Como-os em lentas
colheradas de drogados e balas doces de seguranças
entre o restaurante e o café da manhã.
Nos jardins, respiro contentores abertos
por mãos sujas de fome.
O mais puro ar da cidade vem das «ilhas»
e dos «desertos» das pessoas que se cruzam,
ou se encostam nos semáforos.
Uma zebra chia os pneus…
passo para a outra face do rio — o mesmo!
10.
Um quarto pintado a palavras abertas ao sonho.
No eco, as histórias simples que perfumam o jardim
e arejam o corpo com golfadas de ar cansado.
Telhas de papel e paredes de lápis, chão de pensamentos
e sentimentos — e corpos adormecidos, porque não?!
E um constante regar… a vida, mesmo em dias de chuva.
As mazelas, ficam no cinzeiro ao lado do candeeiro
para que as veja e delas fuja olhando para o espelho
que forra a parede esquerda do meu quarto com o ânimo
na imagem observada voam os gestos para a história
dos objectos que preenchem os olhos — as minhas paredes.
11.
Folheio as palavras ao encontro de pensamentos meus.
As folhas voam pelos jardins da cidade. Pombas e gaivotas.
Ir e vir sem importar. Acabo no mesmo início. O círculo
fechado. O inesperado derrota a teoria. O gelo insensibiliza
a pele. O medo não dói. O papel, único que não incomoda
a alma quando lhe falo com atrevimento.
12.
Olhos que se fecham, adormecem. Mãos paradas,
calam-se. Pensamentos solidificados, sonham. A
angústia, pesa. Os ombros são a consciência
do suportado. A visão é a paciência. Adversidade,
amamento da imperfeição. A espera é a pior parte.
O anjo da guarda entre a garganta e o fecho do círculo.
13.
O peso das palavras é mais leve que o corpo da letra,
dobram-se e desdobram-se e caem no papel como vento,
gelam e aquecem e grelam com o tempo, a moda muda
de fonte. O corpo erecto acompanha o retorcer nas linhas.
Como pombas, voam ao sabor do vento. O caracter
embeleza-se com hastes arruadas, ou despe-se delas,
esguio universos — o olho da letra no corpo.
14.
A minha cidade tem perfumes ausentes e letras a mais.
Nomes, ruas e avenidas, centros comerciais, pedintes
a estender os braços ao espaço dos carros. Metros
a percorrer de lés-a-lés a manta urbana dos neons
nocturnos, o lixo na boca das gaivotas brancas,
as pombas da viera com sabor a vinho, um quadro
num quarto nu, as paredes mal acabadas e por muitos
pintadas com os mesmo tons crus dum esporádico momento.
15.
Ofereço às mãos um divagar diferente penteado por vírgulas
e letras cheias de vazios. Da Cordoaria à Sé entre o negrito
da letra exposta, os dedos deslizam sem rendilhados, os telhados
frios e o pus que leva ao veterinário — o insulto da vida
numa transparência paga. — Mais uma boca que come…
16.
A minha cidade é mais alegre quanto mais flores
passearem no escondido dos jardins e no escuro
das vielas. As pataniscas e um copo de vinho
entre duas letras. Um quarto alugado, a cama fria.
A cabidela entra na ementa. Um guardanapo de silêncio
nos olhos, paredes meias com a consciência nos vapores
do álcool. A névoa do rio sobe e entranha-se na pele.
JFráguas – Poemas Soltos 2, 2009.
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