domingo, 19 de setembro de 2010

1.


Chegam às minhas mãos riachos
ribeiros e rios
a desaguar na ponta dos dedos.

São eles que trazem do meu peito
os segredos e os estendem
no varal onde pousas os olhos.

Os mesmos que dão voz
ao silêncio e ás fontes
que encontras no caminho
quando espreitas meus ecos.

2.

A brisa passa pelos dias
como as marés pelas praias
e tudo é refresco no jardim
onde somos crianças descalças
em busca do trevo da sorte
até que a noite nos afaste.

3.

Para ti criei estes versos
no doce dançar da lua
com letras bordadas a fogo
derretendo-se na pele nua
as águas de meu corpo.

4.

Já eras antes e eu sabia
o sabor da maresia
a embriagar-me os dias
de desfolhada.

Já antes passavas
o serão nos meus olhos
a queimar-me o sono.

Agora adromeces-me
no teus olhos, embalas-me
nos ramos
onde tecemos o ninho
dos corpos
prá noite.

5.

De tão antiga que é
nem sempre tem força
e não visita todos os anos
o nosso jardim.

Veio alva e fria.
Ficou mais do que um dia
a saborear a estrada.

Tão lenta como caíra
foi-se da nossa retina
a neve que nos deu vida
no fogo da madrugada.

6.

A noite veio turvar-nos os olhos
e rasgar-nos como os silvados
do parque junto ao lago dos cisnes.

A manhã chegou com sabor a poeira
sem sede, sem respiração
correu o dia.

E a noite caíu sem o véu
a cobrir a terra do meio dia
onde o mel jorrou.

7.

Restam-nos os dias vagabundos
e as mochilas peregrinas
onde levamos as horas da noite
até à tenda
na relva armada.

Como pastores tocamos
uma melodia a duas mãos.

Como verões
amadurecemos os frutos
dos corações fatigados…

depois do orvalho
a manhã respira.

8.

Pois não. Não, não vamos agora
atirar ao inverno
o celeiro.

Agora
os frutos estão maduros
suculentos
de pele lisa e elástica.

Amanhã
pode ser que apodreçam
aqueles que não comermos
só esses
os outros
não…

9.

Com o silêncio nos olhos
pedes-me palavras
ou apenas um nome

que ilumine
e arda
toda a noite

no branco de linho
deitado
o poema pede-me um nome.

10.

A chama foi descendo
e ficou brasa
a queimar o desejo

com asas 
de pomba negra
chega a sede

aos lábios
do poema
sem moldura.

11.

A primavera demorou-se um pouco mais
no regaço da terra.

Como abelhas
bebíamos o polén dos dias
à luz das estrelas.

Crescemos
sem aprender
a força dos verso
que escrevíamos nas folhas.

12.

Se a brisa te sacudir as pétalas
abre-as

é o verão que chega
à fonte
sequioso

no perfume do teu botão
dorme
a madrugada.

13.

Os jacintos saíram para a luz.
Como dentes,
rasgaram as gengivas da terra
e o silêncio.

As flores têm seu tempo
de chegar, perfumar e partir
de regresso ao sono.

14.

Os olhos fogem da luz
são nuvem,
sombra…

Fazem-se silêncio
e água em fio
a cair na selha dos lábios.

No rebordo
gorgulhos
traçam o leito do rio.

15.

O trevo acaricia-te os pés
no repouso.

O mar
rouco
chama-me à digestão das horas
em teus lábios.

Voo — 
não sei se como pombo ou gaivota —
para os frutos do teu decote.

Impetuoso rio nas entranhas
desnuda as sementes
a madrugada
e o cantar morno do pássaro.

16.

O verão chegou no azul —
como copa a cobrir-te
o meio da página.

Deitado
o rio leva o segredo
para além da foz.

Ficaram os salgueiros
vergados
pelo suave peso da noite.

As estrelas ainda são as mesmas
a iluminar a corrente
onde deitamos a voz.

Voltamos?

17.

Amo o jardim e os segredos
do búzio assobiados aos sentidos
no vendaval do teu corpo.

Os beijos que afogam
os montes
e as águas que batem nas pedras
impetuosas.

A falésia inteira
transborda
a animalidade das carícias.

A porta aberta —
doação do corpo —
à luz molhada.

18.

Como seios erguidos
das profundezas da terra
os jacintos
dormem no colo do dia
mamando da noite
a frescura matizada
das folhas.

19.

Ainda são apenas lâminas
a cortar o vento em bifes de sol
grelhados
no espeto da aurora.

Estes jacintos
apontam o céu
rasgado
à entrada dos sonhos.

JFráguas – Afluentes, 2008

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