domingo, 19 de setembro de 2010

MARÇO

Estendo os braços e, com eles a alma.
Remanso. No meio do poema cai a água
e a vida; no silêncio do corpo
a sombra procura a luz.

É Março nos campos. 



O tempo passou pelas mãos, escondido,
como sempre passa antes da luz ser parte
duma certeza nos olhos, clarificando as sombras
do interior do vaso, lentamente.

O poema é sol e água. A noite
é um verso a dançar na boca,
como estrelas no céu.

Aprendemos a respirar e vamo-nos enchendo
de matérias atiradas à sebenta da memória
com rumores de sentidos.

E nada nos livra de sermos deste pouco —
folhas brancas que vamos preenchendo
com tintas de todos os matizes
no cavalete do tempo — sem descanso.



A consciência é o princípio de todas as traições
na linha de todos os sentidos com sentimento.
Inerva-me, abusa-me, corroi-me devagarinho
como um ribeiro manso a passar por um plano.

Areia do fundo, arrasto-me pelo leito do tempo
na esperança de encontrar mar e luz.

Se fosse pássaro, havia de voar sobre montanhas;
atravessar os desfiladeiros sombrios dos lapsos
fazendo a ponte entre as margens.

É verdade que a água também beija
as duas faces das escarpas por onde corre
e só ela traça o percurso por onde segue
contornando os obstáculos, formando o leito
e, adormecendo no estuário, salga-se de sonhos.



Invisíveis
são os passos das aves
no céu aberto e o crescer,
antes que se abra a terra
aos dentes que a rasgam,
das plantas.

Gosto dos frutos
da terra.

Do seu silêncio adormecido
e das estações.

Paro na antevéspera da primavera
a olhar a flor rosa do pessegueiro.

Os seus braços levitam sobre o muro
junto à boca das mimosa.

Revejo-me!



Este som… a voz prolifera na paisagem,
brada, guincha, ladra
e cansa,

cansa-me os ramos,
quebra-me a vontade,
infecta-me a garganta.

Mas…
Será que tenho ramos ou
simplesmente
raízes a dormir na terra escura
inflacionadas
pela garganta dos dedos?



Sou enorme
nasci montanha
rasa.

A neve não chega
ao meu marco geodésico
nem bandeiras dançam
a proeza da subia.

Cume que sou
obscuro
no roteiro da aventura
sem história.

Contudo
sou enorme
na dúvida.



Ainda sinto pudor em sentar-me à mesa
ornamentada com a toalha das palavras,
o prato da solidão e os talheres do tempo;
um guardanapo maciço fere-me os lábios

— é a caixa dos silêncios a palitar os dentes —
que me cai nas mãos.

No fundo
há rosas dum jardim apetecido
quando o remanço entra nos buracos da pele.

Um cheiro húmido sobe nas asas
e rapidamente cai no papel —
arabesco de nadas —
ondas
momentos.



Este poema deveria deitar-se no verão
à sombra do rio que convida o ser
a saborear os frutos frescos
maduros e abertos nos dentes.

Deveria…
caminhar com o rebanho no regresso a casa
conduzido pelo latido dos cães
a dar-lhe profundidade e evidência de negro.

Apenas…
parte como chegou —
pedaço de terra lavrada
no longínquo mês de outubro
fluído a cada madrugada.



Tenho verdadeiro orgulho nos homens
escondidos que ao longo do tempo
esculpiram na pedra palavras preciosas.

Tenho orgulho nesse escondimento
da vaidade e da satisfação só deles.

Quero um corpo assim:
a satisfação dum membro
é dele
e não precisa que outro saiba
o motivo que o satisfez.

Às vezes, quase sempre,
escondo o velador
da candeia da mão esquerda.

Semeio rente ao chão
em regos de arado de bois.

Há quem semeie de avião
e crie na amplitude — vastos campos,
ampla visibilidade — eu não.

Apenas
em redor do seixo que sou.
Na fina nesga de terra que me rodeia
com todo os perigos das ervas que me abafam,
consomem e derretem
a querer saber da esquerda
a semente que lançou a direita.


JFráguas – Março, 17-2009

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