domingo, 19 de setembro de 2010

8.

Trago colado ao corpo, um fumo de adega. Um barril
entornado nos pés, dissipa-se pela garganta
dum chão sequioso (nearómetro dos sentidos horizontais
presos a uma mangueira que me enche o corpo). Da quena
sobe a música como alarido penetrante dum mal estar desfeito
ao segundo jarro. Na torpidez dos passos, vacilo como rama
abrasada pelo vento. É ali, junto ao caos, que a voz toma forma
de um insulto ao tempo — há um relógio adiantado sobre a cabeça
da cozinha onde fabrico madrugadas de azia e tonturas
amadurecidas num forno de lenha desgastada.

Ainda me lembro como era o trigo, hirto e firme,
como as estrelas dependuradas no quarto, sem fios
nem chão que lhes carregue o peso.




9.

Sou fiel ao ridículo! Tudo quanto é ridículo
abre páginas em meu corpo   embrenhando-me
no que virá: tudo justa causa dos indiferentes; a
irrequieta alegria que foge na tarde que não sei.
Que tempo resistirá ao sorriso do ridículo?!
Despeço-me dele, como mulher dum filho, depois
das águas lavarem os ladrilhos onde pousei a alma.

Tão pouco!… Este escritório mudo.
As letras que pingam dos dedos, feitas sangue.
Como se nada fosse, neste silêncio      ou a vontade
voasse longe      outro rumo     sem de lá ou daqui;
ou… apenas de aqui!!…
                      longe de lá, assim,
                                               tão pouco… pudesse…!




10.

Atravesso para o lado da irreverência: o gesto
a fina parcela que toca o mundo — ainda aberto!…

Quanto poderia o tempo, romper da pele das Letras,
se a Língua adoçasse o vento nascente  (quanto pode
a carne durar, as pedras permanecer, as árvores vergar,
os desertos serem cheios) — sol e água!

Perdidos os segundos das palavras, a lucidez, o arrebatamento;
que restou ao vento, para falar ao dia: da combustão do tempo,
da raiz das Letras, da formação da Língua, das folhas das palavras:
abraçadas e erectas… e vazias — caídas no silêncio
onde começaram… as causas?!     Como se dizer “palavras” fosse
abrir janelas; puxar cortinas de azul — fazer o mar entrar pelas
asas da casa! Como se o “mundo”, o tudo, o todo fossem, da luz,
castigo suspenso nas ondas do nada… vazios!…




11.

Escrevo-te partes de sangue, de pedras fendidas; pedaços
de carne nas veias do tempo: o dia nas nuvens baixas
quase chamando o cinza da viagem. (O relógio vira
à terceira semana?!)
Devolve-me a partida dos sonhos, agora! — Exclama-te
água terrestre: azul preso na Língua que dorme. És mim.
És mim de mim no nó do tempo e das mãos que afastam
as sombras! Olho-te nas perdas e ganhos: o naipe do
jogo das flores — verter-te?! Espero-te na Língua do vento.
Neste manto sem estrelas, nesta terra sem cor:
um reflexo suspenso sob a neblina.

O mar cresce na barriga da terra.
Há um rio ali; perto, um pescador de futuros.
Lanço “agoras” ao silêncio, na esperança de ouvir
pedaço de meu sangue — nas tuas margens.




12.

Embalado pelos sussurros da mais fina manta:
o corpo ausente no tempo. Este movimento
de paredes        fixa-se à voz e o silêncio sobe
estremece irreverência pela casa.

Sê luz! Dá-me a mão no escuro e guia-me
pelos corredores da gruta que regurgita vida
que é pele. Sê Luz! Lava-me no Jordão das veias
que me enchem o corpo    a cor que me prende chão,
mãos — páginas de poesia; a luz: teus olhos!
Como se não houvesse distância entre este lugar
e aquele onde guardo as cores.   E só depois, muito
depois, retira da tua a minha mão para que coma do que
ela produz     em corpo.




[Axioma]

Escrevo-te palavras duras, ou soltas águas
de rios entranhados na pele; são momentos
de folhas, de papel, que abrem ao ligeiro toque
dos dedos que as voltam.
Longa é a boca e de profundo vem o vento
da anunciação, ou voz embriagada que é já queda
no vaporoso som dos tecidos: alindar dum corpo
na esfera nocturna onde canta a quena
às pedras adormecidas!




14.

Sinto o vento nas mãos e as páginas
a fugirem-me do corpo, como folhas de outono
a cantar ao céu suas cores   fogem-me pedaços
do corpo que já foi corpo, suores que já foram
frio, coração que já foi inverno   destes ramos
partem os frutos rumo à língua, a voz que se
espalha retornará eco, virá molhada, suja ou…
rasgada como os rios de meu corpo de poeta?




15.

De todos os lados, vêm partes sem ser eu.
Sinto o engano quando me olho ao espelho
em cada manhã — a cidade chama o corpo
para longe dos olhos, no mesmo sentido em que
paralelas linhas correm da garganta.
Há uma fonte, na encosta perdida os sedentos
procuram mitigar ânsias — urgências de relinchos
pautados nas folhas vibrantes de cor.
E tudo é ilusão, mesmo as notas da quena, voando
não levam harmonia, sim confusão. É da noite, da
noite ao meio-dia — sol ou chuva, que importa…

©JFráguas – Nocturnos, 2009.

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