domingo, 19 de setembro de 2010

De  levante  a  jusante…

a.

A nudez, minúcia da terra,
a ordem natural da brisa
escorrendo pelas mãos
rápida      subtil o pensamento
celebrante do divino
vontade sensível no pulso fino
túnica da paixão que a prumo
guia ao azul desse projecto
imanente no instante

o austero escultor extasiado
num silêncio de sol
a unidade inteira
em nós o meio-dia nocturno.

… … … … …

Ofereço-te a flor pronta (!)
há colheita         do que é
passo no rosto da noite
                                    piedade
não existe na hesitação
do oferecido dia-a-dia
sem bilhete de regresso

deixa a kornos
serás a letra do aceite!



1.

A noite embalada
folha a folha
um espasmo de seiva
lábios húmidos
o pulso firme
dedo no virar a página
canta lágrimas de flor orvalhada
cor é sangue.



2.

Minha face
a testa baixa em sacudidelas
como crina teus cabelos
sono contido nas asas da águia abertas
zumbem abelhas nos flancos
movem-se as montanhas de anos
séculos que crescem monstruosos
no húmido interior
                                respirar de respirar
as águas reunidas movem-se devagar
no clamor da brisa
como anéis no interior do instante
com que se constrói a pedra
deslocada do divino.



3.

Com som crescente
a branca noite que nos chama
cavalgar selvagem     a pradaria
coberta de estrelas e de sombras
olhos e estremecimento
rio intumescente de levante
em cascata          a jusante
abre-se a foz desejada
como púlpito de orada
onde a voz se faz silêncio.



4.

Requebro (o fim da flauta)
voz que cala o impulso
velas rasgadas que o vento
deixou de embalar
                              as mãos que
eram tuas
não as quiseste segurar
firmes    agora se vão noutra cor

movimento que parou
o lânguido corpo
na cor real dos olhos.



5.

Pudesse o entendimento chegar
de jusante afirmar conhecimento
antes da água parar   o infortúnio
desta sorte sempre gravada na pedra
esquecer o que se dá
olhar a imensidade sem a quem
de olhos largos no horizonte
jaz generoso o reportório
desobrigado de lugares
como os de lá
tão desairosos
estes que nunca foram daqui.

Fosse o entendimento
mais forte que a chuva
e o conhecer um quotidiano
sem perda no tempo
que afecta a história
no poema que se acaba.



6.

Desta chuva — a estação aberta voltou —
escorre pelos rios da carne um pasmo
a determinar-se vida num necessário
efeito descompressor, como esta água
livre desta estação aberta que voltou.

Deste telhado — a cor do rio aberta
ilumina sobre a cidade uma nuvem de asas
desconhecidas sopradas por um vento
deslocado dum hemisfério frio    abana
meridianos de lugares ausentes
sua presença de gelo — a cor aberta
no mar que a colou.

Desta janela — batida a temporal —
os vidros embaciados espelham
uma paisagem em banho demorado
pensamentos sentidos        nas mãos
dedos entrelaçados no tempo que mostra
a imagem dum setembro pardacento
chorando a queda das folhas e as cores
rubras de um outubro irreverente
deitado no corpo-sombra.



7.

Sem Humildade, nada! — De tuas memórias
este resoluto sentir preenche as páginas
com que o ego se afirma «eu» filho/neto
na delgada luminura das letras
formando as mãos e o voo dos olhos.

Da fina flor da idade         que já foi
                     ou deste deserto desmanchado
ainda são elas que bolem o monorrítmo
da consciência que leva daqui a Nazaré
onde todo o progresso é… regresso.

Seriam diferentes a usura das mãos
e dos dentes    e dos olhos
os pensamentos sentidos…
do bater da pedra onde nascem os rios.



8.

Ainda agora a agonia
das palavras caídas em poço surdo
junto às guias do canhão que atira
corpos à cidade    e os traz de regresso
cabisbaixos e doridos    francos farrapos
entendem-se na praia ouvindo o silvo
a despertar os dias
um novo estrondo
do mesmo canhão a hora fixa.

Perto de lá como daqui
as palavras que ficaram no ar bailando
como as gotas deste dia e sua sombra.

A coragem de dizer sentindo
o sentido que teriam    apanhadas
as palavras que caem presas à chuva
da nuvem que se formou sobre a cidade

e resvalam para os esgotos
empurrando toda a carga
poluente dos rios ou          fast-food.



9.

Que é isto… não, não pode ser o que entendo!!!!!…
Mas se o for, da mesma maneira com que o entendo

quero estar errado

as minhas mãos sujas numa névoa
meu corpo exposto como a chuva
meus traços

estas rugas em volta dos olhos
as cãs no toque das orelhas
o surdo ouvido a Pólux

monopse de quem quer olhar
carregando no absurdo
momento de achar.

Tenho nas mãos calos que toco com orgulho
sinais duros dos dias em que a HUMILDADE
se elevou mais no digno esforço de ter mesa.

Esquece,
não olho a finura dos dedos, a singular cor das unhas
feita telhas dum escondimento        ainda vem longe
à cinza massa: o que é e o que não é…

pelo vento voam as palavras
na certeza absoluta
de que tudo que levanta voo
acaba deitado no chão

não fosse a morte           caminho na vida!



10.

Entretêm-se as mãos (o único e fiel julgador)
pelos prados agora secos (apesar da chuva —
tão tarde cai, como gripe que espera escondida
o momento da fraqueza dos corpos)     a morte
esse pedaço que pende em cada sopro em cada
batida    apenas leva restos de carne   (será que
tem dentes para os ossos: quanto tempo demora
a devorá-los?)
                          Neste quase entretenimento dos dias
os vazios que se passam    escondido entre as folhas
da cerejeira   na fina película que divide a luz do sumo
(ou do caroço que incha na vermelha água)
verto peças de puzzle, o corpo todo    dividido e à espera
de montagem — soprada pelo vento, colada pela água
que desce a montanha, comprimida pelas mãos
                                                                    [cada imagem.

Estar e ser repartido pelas múltiplas paisagens
chegadas ao vidro pelo andamento das horas
que mais resta na esfera ínfima onde o corpo pertence.



11.

Como tudo que é suposto e nós supúnhamos
na dança das folhas e do trigo maduro
a canção da flauta branca      como assim
este seco de olhos e este ritmo bombeado
às mãos…!

Entre as unhas   manchas e segredos retêm-se
pequenas partículas de areia fina retiradas
a contragosto     o banho esse marginal inimigo
da memória leva do quase nada  um muito
longe da calçada onde os pés pousam dias
do que é suposto e nós supúnhamos na dança
do céu sobre a terra e a cor rosa que iluminava
rostos de pergaminho
                                      páginas
                                                        carne solta!



12.

O silêncio do satélite em teus números
voz ausente corres a manhã ao sol
procurando entre as ervas o anel ou
o dedo que o anel compunha — foste
vestida de alvura, os cabelos soltos
como ondas a banhar-te as faces, à casa
das fotografias prender a imagem como
louca que salta pelas ruas tentando agarrar
o tempo       fossem os instantes da relva e
do murmúrio do vento do anel deslizando
lento no dedo que enfeitava e nada perdias
na praia ficou corpo ao sabor das vagas.



b.

É tanto que o destino envia que quase
não sinto o remoer do tempo na muda
a cor dos cabelos é aviso, uma força
quebrada. dobra-se a espinha e a antiga
boca sempre aberta tenta elevar colunas
graníticas em função do mármore.

Por detrás do espelho, rente às costas da
casa, há uma secretária com folhas dispersas
onde discurso partes de inverossimilhança
a árvore e os frutos, as aves e as borboletas
a seara e as flores — e naquela jarra sobre a
secretária: um jardim privado de mil e uma cores
bosquejo de segredos     borrifos lavrados
colunas de fumo   tesão  calores   entre duas
línguas na porta da boca  e joelhos aos pares
tocando tambores.

É tanto que o destino envia
de levante a jusante…

JFráguas – De levante a jusante…, Março/Maio, 2009

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