domingo, 19 de setembro de 2010

1.

No instante em que o galope dos cavalos pára
é um longo relincho que me atira à água    flutuam
afectos   palavras   imagens   tudo sobrevoa o espaço
médio da realidade-sonho       ousei partir e vomito   outubro
junto com as algemas feitas tempo que retêm a morte
enlouqueci todos os objectos   que era antes   e senti a flutuação
da luz no corpo despido de preconceitos        partir
há muito partira   há muito voltara        partir e voltar como notas
paridas numa pauta anónima e secreta       chegada ao sopro
longe da boca        dizem que as plantas gostam de música e
crescem com mais viço        que a música favorece
                                                                     mais do que a água
o brilho das pétalas        e nasci pastor e flor e poeta-flauta        músico
da música ancestral na pauta        tocador         e do mundo
o rebanho surdo que move a cabeça
sempre que apresento a quena1 ao dia
olhares…
afluente de todos os rios que me nasceram corpo

1 quena é um instrumento musical de sopro, da família das flautas.




2.

Cresço a golpes de sons perdidos e na procura de algo que alcance
aos olhos o que está além dos ouvidos — corto a terra para ferir
o ar em cada golpe palpitado pelos sentidos: desejo-fluxo ao ritmo
de relinchos misturados. Toco o vagueante dos abismos, afastando
a temperatura do corpo num choro de seda, a cor da música dos séculos
antigos no ritmo do sangue, pesado e profundo, no seu percurso vertical.
Da pele, cada gesto, celebrante da escuridão, volta tudo ao avesso
como a voz que atravessa as Eras da terra e quebra o que toca
com seu peso de gritos ásperos junto aos humores com que o fumo
sopra às plantas a marcha do êxtase. Há no mundo mais um
esqueleto de granito a vaguear nas notas de aço como granizo
à volta do pescoço desenhando a marcha da carne, contornos delineados
na escrita invisível dum rosto embaciado. A casa flutua de olhos fechados
e os postes das notícias transmitem em morse a crista de uma onda
que se aproxima da cidade pulverizando as paredes de cal.




3.

Num derradeiro esforço fecho as palavras na garganta
e a luz enterra-se num cinza trespassado a tons rubros.
Acontece-me com o corpo o mesmo que com a distância:
cobre-me a escuridão. O pensamento salta num mergulho
olímpico e ilude-me o olhar ardente. Sinto o desejo crescer.
Nas asas da paixão o teu centro encontra-me deitado
no longínquo que se aproxima — o som do galope
sobe de tom, a força dos cascos, o tremor da terra,
a tensão que flui furiosa e indomável na ara.
O fluxo que conserva a existência derrama-se.
Porque nos absorvemos nesse sou-te / és-me colo a minha
na tua sombra — além, onde nada há a descobrir,
deixo livremente de prescrever limites.

Voo sobre vales e colinas solidário.
Sem encontrar o que procuro
                                              perco-me nas linhas da busca.




4.

Incapaz de me suportar, retiro a língua da boca
e todas as tripas — agora sem porta — fogem do lugar.
Atiro ao silêncio todos os restos que pendem
destes ramos carcomidos pelo tempo. É hora de podar,
fazer chorar a voz presa ao fio dos bardos. Encostar
os ouvidos às notícias das raizes e voltar a sentir
a seiva subir a cepa alimentando os olhos adormecidos.
Outubro abre lágrimas esporádicas ao vento de nascente.
Agita as folhas e dança volúpio. Afasta cortinas,
abre janelas. Da paisagem sobe um fogo de veias:
labaredas de lábios lânguidos cercam o toten.
Todos os tambores rufam, a dança da chuva começou e
atinge ímpetos tresloucados. Selvagem garanhão relincha.
Os trovões abafam-o. A chuva cai. O instante estanca.




5.

Podia reter-me só memória. Uma fotografia feita pele
dependurada no salão consagrado do corpo. Mas,
quantas mentiras conserva a rotação da terra?
Quantas mortes acontecem nos segundos escuros do dia?
Agora que te vi, escolho pertencer-me.
Fechar as palavras à flutuação dos afectos, pender os factos
nas dobradiças da voz — pertencer vazio ao olhar, ao nada
que esvoaça por cima do verão.
Esquecer a fissura da diferença.

Escolho-me pertencer
ao lugar polar dos sentidos
sem casa ou pedestal de um só olho.




6.

Talvez um dia possas entender os actos, a forma como deixas
tuas marcas no mundo, como os pés doem sobre os cabelos.
Um dia, encontrarás nos rostos que procuras a ausência do que
te foi dado e recusas nesses teus novos nervos — que defines
como não vida! Um dia, despregado da parede encontrarás
o retrato partido. Um vidro que não suportou a agilidade dos
esquemas com que urdes o rosto que te vai olhar, imóvel, no chão.
Quiçá, se olharás pela janela das transparências a cor púrpura que não
verte uma imagem caída. Te dês conta do devaneio para onde atiras
o que não conservas. Deixo a idade do corpo estatelada. Os ossos
da paciência estarrecido no não sou capaz.  Deixo-te na janela do orgulho
vis-à-vis com o que não podes passar — a peneireice do coquetismo
espalhada pelos homens. Por todos os homens que te batem os olhos.
E do chão, com as lentes dos olhos partidas — feito prisma
de Newton — decomponho a luz das minhas veias e os nomes
no vão simples do jardim que vai de Rosa a Rosa, de rosa à rosa.
Hei-de voltar-me à noite, sem ter estrelas nem ver a cor do novo dia.




7.

Firo a cortina com raios de luz seca
                                          a janela geme humores
estendido na vertical o sol saboreia o mundo
aquecendo  com sua língua de fogo  os mamilos
despidos das montanhas
                                          são as mãos quem agarra
o tempo   o ciclo do voo que nasce nas entranhas
dum vulcão de lábios abertos à neve derretida

dos subterrâneos da alma partem raios gemidos
num cavalgar de letra hirta no espaço
onde o mar se afunda no leito cavernoso
a água tudo inunda      areias na pele da palma
erguem raizes   versos de um poema gritado.

©JFráguas – Nocturnos, 2009.

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