ENTRE PALAVRAS
Intolerância.
O monopólio do dueto da amizade nocturna,
as paredes brancas do sono a duas vozes,
o ressoar da pele no encosto das letras,
a boca fechada ao ar, línguas contorcendo-se
entre a garagem e a viela, a frieza da morte
nos dedos, a jarra cheia de amores catastróficos.
Um lamento contínuo. Uma dor incurável.
Um diário voltar aos corredores da amargura…
Limitado.
Não leves a mal o meus actos, escuta! É por cada centímetro
do teu corpo que vou à luta, Quero conquistar teus pensamentos.
No abandono, a gruta é um bom refúgio para um urso invernar
o sal dos sentimentos.
No invento: as tempestades, as tristezas e as alegrias.
Vou perdendo a mania das prisões que imagino para as veias
por onde me corre o amor que limita o arrepio, a incerteza, o olhar
a penetrar o abandono do calor dos meus pés!
Cumplicidade.
Foi com a cumplicidade do mar que nasceu a paixão
em pleno Outono. As estações do ano pouco importam
quando a temperatura dos corpos sobe e ultrapassa
a ternura dos beijos atirados à loucura dos amantes.
Beijados pelo horizonte, deixámos que as ondas
salpicassem nossos corpos com o sol poente.
E nessa cor irradiada deixámos de ver a cor da noite
que vem chegando lenta.
O mar, cúmplice, também chora e tem remorsos,
sente culpa pela noite do Amor de quem de tanto
olhar para si, deixou de prestar atenção ao Caminho.
Paixão.
O meu coração treme como pássaro ferido.
Bate violentamente de encontro ao Ego revoltado
onde deixei cair o rosto dos pensamentos.
Porque me sinto assim? Distantes e de perto
assomam rostos de sofrimentos inocentes
de gente que nunca amou neste mundo.
Nos dedos a paixão pelos pobres e o grito
contra as afrontas da pobreza. As crianças
desamparadas na estrada do vício, na rua
da orfandade levantada pelos Estados que
escravizam povos na «lata» da Economia.
Nos dedos, o pedinte da sopa; o inocente
enganado pelos desnaturados dum mundo sem emenda,
urdido numa profunda onda de sofrimento…
O meu coração bate pela perda de tempo,
pelo calar no espaço do Ego… ferido pelos teus olhos!
Tragédia.
Os óculos faltam, nos olhos miopia, a luz escurece
meus passos apalpados por vultos sumidos.
Faltam as mãos para tactear o caminho prá mesa
e as pernas não aguentam o peso do corpo froixo
coberto pelo sono duma garrafa de vinho maduro.
No pressentimento do pranto com que se lavam
os fins que daqui a bocado acontecerão na voz,
apenas a explosão no peito dificultando o salvamento,
Lentamente desaparece o navio, foi a pique…
Amanhã podes ler a notícia!
Palco.
O grande circo de milhões — formigas carregando
a fome para o celeiro do mundo novo, sem sementes
e de terras vazias não se alimentam os pássaros —
levanta o pano à representação da bestialidade
dos seus actores: governos, médicos advogados, juizes
curando os mal dos povos inocentes e sem voz.
De quando em vez, um palhaço e abre-se o sorriso
aos olhos míopes e irritados pelo esforço de sobreviver
na escuridão onde se jogam os sentimentos de riqueza.
A vida é um palco com actores caricatos…
— nós!
Mordaça.
Colados lábios ao calor, sentindo a língua move-se
para dentro das letras. A vírgula separa a oração
subordinada ao verbo. O sujeito aparece na boca.
Um particípio de lugar abre-se ao sagrado.
As mãos deslizam pelo poema com a suavidade
que entra na epístola do lado esquerdo.
A página que os dedos acariciam arde no fogo
das águas a querer rebentar barreiras.
O precipício inunda-se — brancuras colhidas
no jardim das palavras.
Fervura.
As palavras levantam o fogo dos dedos, remam
no mar dos pensamentos, as imagens guardadas
fervem nos olhos. A fala é um mudo sibilismo.
Ardo entre cheiros no jardim dos sentidos
enquanto as letras voam no vapor do tempo.
A união é um momento de espírito,
uma comunhão de sede a beber
na mesma fonte sublimada.
Sublunar.
Sonhas (se é que existes) quanto me lembro
do caminho azulóio que percorríamos.
Na verdura dos anos deixámos passar
as estações do tempo.
Apanhámos o comboio que leva a novos horizontes.
A coragem é parte da liberdade
com que carregamos
os Caminhos para o além.
Ainda assim, nem sonhas o quanto tenho sonhado
viver no mesmo telhado junto às tuas montanhas
brancas como o frio que me escorre dos dedos.
Coroa.
Teus cabelos coloridos de dor chocam o rosto
onde brilha o azul do tormento. As barbas
têm a cor da terra banhada pelo Teu sangue.
A túnica contorce-se com os rasgos da carne
pregada à chapa da minha culpa. Os membros
lembram o abraço que a Humanidade não aceita.
A Tua voz queima-me no sono da coroa
que Te coloquei na cabeça e as agulhas
com que remendas os passos perdidos
no meu Caminho quando me falta Tua luz.
Beijo.
Na mão, o sangue de Teu corpo.
No rosto, a criança que chamas ao colo.
Na boca, a palavra que alimenta os dedos.
No corpo, a saudade da luz das estrelas.
No meu eco, vai o beijo de lábios entreabertos
no Caminho que me dás a seguir. Quente
é a cama onde me deitas e Te deitas ao lado
como um lago fresco a matar-me a sede.
A pomba canta a paz do sono e o brilho
dos olhos o colchão de carne onde fecho
o dia com uma canção de embalar.
Os teus montes são madrugada luzidia
que abre o gineceu da tua flor ao espraiar
suave do orvalho que o corpo testemunha.
Paisagem.
O Outono abriu a luz do mar. Sim, os teus olhos
cintilando num voo de pomba mansa. A cal
demorou entre a primeira e a segunda demão.
As paredes são mais bonitas quando o branco
as lava da sombra da manhã e a pomba bebe
na fonte do poema o mel dos figos.
Razão.
Amo-te com a velocidade dos anos livres
e a sinceridade dos sonhos na razão
dum verso puro e delicado como asas
de borboleta. Pouso nas tuas pétalas
a minha manhã fresca e o fogo do olhar
segue no abraço com os meus intentos.
O encanto da terra também é o amamentar
dos seus filhos com pedaços de sol e névoa
numa explosão de linho.
Untitled.
Fome. O pão duro. Boca ausente.
A letra bate nos olhos. Tela composta.
Luz e sombra. O jardim passeia-se
entre os dedos e a janela.
Corredor de sal iluminando
a tarde que tarda no dia.
A noite ceia entre paredes
de cal, a mancha que escorrega
para o silêncio. O mar sereno
bate nas pedras a foz. A fome
tarda na tarde que leva ao novo
dia a voz e o poema entre comas.
Como as palavras orvalhadas
num efémero pedaço de lamparina
inclinando a espada quando passas
numa saudação à fonte. Beber-te
na sede matinal do fogo.
Logo ainda será dia, logo é longo…
Naufrágio.
O corpo estendido na cama
da praia arde o azul nas mãos
no mais secreto do teu corpo
a boca da fonte seca. O vento
passa e joga às escondidas
com a maré no horizonte.
A madrugada vem com a crina
de fogo colher a haste
madura e lume nos olhos
a verter água à demora.
A página luz no escuro
à pomba da noite as mãos
escorregam na passadeira
da vida. O pastor toca a flauta
entre lábios os lábios
um corpo apenas na espuma
onde desaparece o mastro.
Um corpo, corpo apenas,
ou apenas corpo
à espera das águas de abril
florindo entre as pálpebras
as sementes esperam
o abandono das mãos
entre as colinas.
Jardim.
O segredo da boca é uma letra,
o dente espeta-se entre os lábios
do pote de mel, prova-o um dedo
mergulhado no silêncio. É verdade.
A pomba da noite não treme
as penas, levanta-se. A cabeça
gira na névoa ao encontro
do poema de letra aberta.
Fui feliz, agora parto.
Plágio.
O vento dos meus dedos,
os teus dedos no vento os meus.
O tempo metereológico
da montanha, o frio, a fome
retorna à aldeia adormecida.
Fome. Fome de nervos e pele
do logo entre um pouco de crack,
o crash na passadeira. O teu poema
na boca aberta suspiro a pele
a página branca.
Depois a névoa, ver e não ver e vendo o ver
o não ver dos dedos sente
o plasma, o sangue, um globo branco.
Montanha.
Como são belos os mamilos da minha avó,
morreu de diarreia de palavras, e canções.
Meu avô era bêbado da viola e romarias.
Tinha voz o meu avô e voz tinha minha avó.
A voz que me sai os dedos saía da garganta
do avô, a que me sai do efémero da da avó.
Da mãe, herdei o som mudo dos hagás do
mundo.
O meu hagá é pequenino, sei. Como
sei que não é um «i» investido
nem um «y» exposto.
Apenas o mar. Sou eu um pouco,
nas ondas e nas pranchas que calcas.
Também há tombos
do cimo das montanhas de espuma.
Disparate.
Um encontro de silhueta entre o candeeiro
e uma paragem de autocarro. A favela entra
no poema com o sol da noite mal dormida.
No meu pesadelo, o impróprio ao descanso.
O sono manso no sono. Esse sono pesadelo
nos dedos, os dedos, a voz entupida nas condutas
entre chuva o dejecto. Dejecto da tassitura;
nos dedos, o papel.
O disparate é uma deusa que amo
sobre uma fêmea de papel
penetro-a com o negrume, a alvura,
mas é meu. A boca minha.
Chupo-a e garguejo-a,
rebolo-a, a garganta em círculo,
círculo nas mãos do geómetra
é boomerang nas mãos do canguru.
Fado.
Provocas
a tela
o silêncio voa.
É noite. Essa noite
negra
dos astros sem sono.
A roupa
é rodilho.
Adormeceu!
JFráguas — Entre Palavras, Janeiro/Dezembro 2009
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