domingo, 17 de outubro de 2010

2009-2010
















1

Hoje respiro, amanhã não sei.
Hoje procuro as palavras que deixei no pó, amanhã não sei.
Hoje busco as peugadas debaixo de água, amanhã não sei.

Hoje sou o que me conheço e o que não me sei
deste olhar que se estica para o minuto seguinte tentando
agarrar uma surpresa com os pulmões.
Porque hoje respiro e amanhã não sei. Porque hoje leio-te
palavras que me deixas no pó, as peugadas
de areia demasiado próximas da água — e amanhã não sei
se poderei esticar os olhos para o que sei não estares a ver.


2

Hoje a respiração é mais dolorosa, espera um alívio
que pode ser quando teu rosto negro esvaecer de meus olhos.
Hoje, o coração palpita a dor que te vai esganando o ventre.
Impotente, vejo o frio tomar conta do teu corpo.

Adormeces sem um gemido.
Com o olhar fixo de quem espera despertar
quando um novo dia nascer.


3

Vieste a pedir que te levasse para casa com a promessa de que ficarias.
Desta vez, acredito em ti e dou-te o colo como boleia. Sei que não mais
abandonarás a sombra do pessegueiro onde paciente esperavas a saudade
dos passos a chegar. Deixo-te duas lágrimas sobre a fome de ti e cubro-te
pela última vez com o que me deixas para te fazer próxima.

Pertencerá aos homens o coração ou apenas a ilusão de tê-lo?

Descabido é tudo o que hoje se cola nas mangas – rectangular
o olhar da hora em que adormecida te carrego para ficares comigo  —
sempre que me lembrar do lugar de ti; sempre que olhar
pela varanda a parte mais baixa da paisagem onde estás pó
a contar-me os dias como quem se não esqueceu de voltar na hora fina
de descer ao céu da memória.

E já eras poema sem saberes o movimento dos meus dedos.


4

Tantas vezes flexionaste a minha língua ao deitar do teu corpo
negro qual passagem de alma na lama do dilúvio. Sinto a saudade
de não te poder tocar fortemente com o sentido que deixaste
como semente de ti presa nas minhas mãos.


5

Só pensamentos. Só pensamentos de ti
pousaram todo o dia como folhas desprendidas
duma árvore de saudade. 


6

Só!…


JFráguas — Epilepsia das Horas, 07.10.2010






1 comentário:

  1. Pode ser da hora, da cor das palavras negras
    dos filhos na boca, do corpo morno e nele que todas as corridas nas madrugadas adormecem os pessegos maduros.

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